Uma volta no domingo, de Ricardo Thadeu

O conto desta semana na coluna CONTO AFORA traz o confronto da banalidade diária com a faceta insondável do homem. Além disso, a concisão, a música que rege o texto são méritos de Ricardo Thadeu, um escritor que mesmo jovem já desfruta de um considerável reconhecimento.

Boa leitura!

Conto Afora 3ª TEMPORADA

Hoje é sábado e Moreira acordou cedo para ir ao supermercado. Com uma lista de compras numa mão e uma capanga na outra, atravessa a porta da garagem onde repousa seu Opala vermelho. No interior do possante, gira a chave e liga o rádio na estação local. Teremos tempo aberto. A música favorita de Moreira começa a tocar. Ele sorri com a agradável coincidência e aumenta o volume. A melodia rapidamente inunda o interior do automóvel. Moreira acelera e, por alguns instantes, se esquece da tarefa que o tirou da cama às seis.

A caminho do supermercado, outros carros acenam pro Opala vermelho de Moreira. Um Fusca azul-calcinha, conduzido por um elegante senhor, desacelera e abaixa os vidros quando avista Moreira na porta do Almeidão.

— Moreira!

— Euclides!

Um par de buzinas e cada carro vai pro seu canto. O fusca azul-calcinha some no Beco de Oséas. E o Opala vermelho de Moreira, agora estacionado na porta da Câmara de Vereadores, é bem guardado por um sujeito barbudo que promete não riscar a pintura.

Moreira, então, começa a conduzir o carrinho de compras nos longos corredores. Escolhe a melhor ervilha enlatada, para fazer a sopa de Cláudia. Ela adora sopa de ervilhas. Depois, uma dúzia de caixas de leite desnatado. Mais adiante, colhe seis latas de aveia em flocos finos. Desde pequena, Cíntia adora mingau de aveia. Na sessão de frios, o queijo de Cíntia e o salame de Cláudia. Tudo em função dessas duas.

No caixa, Moreira tira alguns cruzeiros do bolso e sorri para a atendente. Um moço recém-contratado se oferece para levar as compras até o carro. Moreira agradece, mas leva ele mesmo os pacotes pro bagageiro. A caminho de casa, Moreira passa na floricultura e compra lírios para Cláudia e um ursinho de pelúcia para Cíntia. Depois, passa na farmácia e reabastece, com gaze e esparadrapo, a mochilinha de primeiros socorros. Quando o Opala vermelho de Moreira finalmente beija a garagem, uma vizinha aguarda na porta.

— Seu Moreira, eu escutei um barulho estranho ontem. Dona Cláudia está bem?

— Ela está ótima, Dona Eugênia. — responde Moreira, tirando as compras do carro.

— Tem mais alguém morando como vocês? Ouvi vozes…

— Não, Dona Eugênia. Deve ter sido a tevê. Agradecido pela preocupação. — fazendo bater, às suas costas, a porta da garagem.

Equilibrando as compras, Moreira entra em casa. Caminha até a cozinha, deposita a capanga, os lírios e o ursinho no balcão. Abre a mochilinha de primeiros socorros, pega a gaze e o esparadrapo e vai pro quarto. Lá dentro, Cíntia, completamente nua, e Cláudia, de calcinha azul. Ambas algemadas à cama. Moreira vai fodê-las o resto da tarde. Depois, fará uma sopa de ervilhas pro jantar. Amanhã é domingo. Talvez, ele e Cláudia saiam para passear em seu Opala vermelho.

cara de bundaRicardo Thadeu nasceu em Riachão do Jacuípe, Bahia.  É mestre em Estudos Literários (UEFS), professor e escritor. Publicou, dentre outros livros, Camisa de Marte (Multifoco, 2011, contos). Seu site é www.ricardothadeu.com.br.


4 comentários sobre “Uma volta no domingo, de Ricardo Thadeu

  1. Surpreendente!
    Grande Ricardo, fico a imaginar que uma vida aparentemente calma, tranquila e de hábitos costumeiros pode esconder faces sombrias e traiçoeiras. Penso também que os humanos carregam mundos exteriores bem quistos paralelos a mundos internos em constantes desequilíbrios. Teu conto é um banho de humanidade e suas múltiplas facetas.
    Fora isso, como é a cor azul-calcinha? Kk

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