Táxi, de Victor Mascarenhas | Coluna CONTO AFORA, edição especial

Não, este não é o início de uma nova temporada da coluna CONTO AFORA. Este é o que chamaríamos de ‘episódio especial da série’. Desta vez, a coluna traz um conto de Victor Mascarenhas. Talvez celebrando Scorsese, em sua atmosfera, ou evocando Bradbury, na tensão bem dosada e no insólito, essa história leve e triste insinua nosso desnorteio diário. Obrigado,  Victor, por estar na CONTO AFORA.

1505642106

– Táxi!

Apesar de saber que os motoristas de táxi nunca ouvem você chamar, ele sempre dizia:

– Táxi!

Eles param somente por causa do gesto. Do aceno que você dá com a mão. E, às 2:31h da madrugada, eles só param se estiverem desesperados ou se você tiver uma cara muito confiável.

O que não quer dizer rigorosamente nada.

– Boa noite, doutor. Vai pra onde?

Lobo era um taxista da noite. Um caminhante noturno. Sua preferência pela madrugada era, oficialmente, devido à temperatura mais agradável, mas ele sabia que isso era uma bobagem Ele preferia a noite porque sabia que à noite a cidade era só sua. Ele girava e girava pelas madrugadas sem se importar de pegar passageiros. Mas era preciso, mesmo que arriscado, levar alguém até algum lugar. Lobo vivia do seu táxi.

– Me leve pra casa.

O passageiro trabalhava num prédio desses cheios de escritórios. Não tinha carro e sequer sabia dirigir. Voltava pra casa de ônibus, mas, devido a uma reunião urgente do seu chefe, teve que deixar prontos os relatórios que o maldito precisava. Depois da meia noite não havia mais ônibus para o seu bairro ou para qualquer outro, e a firma pagaria o táxi.

– E onde o senhor mora?

Lobo percebeu que esse era mais um daqueles passageiros confusos, que precisam mais de um motorista de táxi do que de um táxi.

– Eu… não sei.

O passageiro realmente não sabia. Foram horas e horas diante de um computador. Tensão, submissão total ao trabalho e o medo de perder o emprego apagaram completamente qualquer outro pensamento da sua mente. O passageiro não sabia mais nada além do que estava nos seus relatórios ou do que acontecia no escritório.

– Se o amigo não disser onde mora fica meio difícil levar o senhor em casa – Lobo dizia isso já com o táxi em movimento. Não era muito seguro ficar parado na rua a essa hora, e ele precisava andar pela noite.

– Eu não consigo lembrar…

– O senhor não tá me gozando não, né?

Lobo dizia isso mas sabia que ele não estava mentindo. Os anos passados entre o volante e aquele banco surrado tinham dado experiência suficiente para saber quando alguém mentia no seu táxi.

– Não, claro que não. Eu me lembro de tudo. Do trabalho, do relatório, do meu chefe e até do sabor da pizza que comi no escritório.

– E não lembra onde mora?

– Não. É estranho… Parece que eu não moro em lugar nenhum…

– O senhor não lembra de alguém pra ligar e perguntar o seu endereço?

Lobo tentou, mas não conseguiu disfarçar o riso daquela pergunta idiota.

– O pessoal do escritório não sabe onde eu moro e não iria ligar pra ninguém uma hora dessas.

– E sua família? Algum amigo do prédio ou da sua rua?

– Eu não me lembro. Só me lembro das pessoas do trabalho…

– Então é melhor parar em algum lugar. Não dá pra ficar rodando sem destino por aí.

– Não. Eu preciso lembrar. Preciso voltar pra casa.

– Mas vai ficar caro para o senhor. Salvador é uma cidade grande e esse horário é bandeira dois.

– Tudo bem, a empresa paga. Onde o senhor acha que eu moro?

Lobo achou estranha a pergunta, mas encarou aquilo como um desafio. Se ele descobrisse onde aquele maluco morava, além de mais uma história curiosa para a sua coleção, ele teria a comprovação que os motoristas de táxi conhecem realmente a alma humana.

– O senhor deve morar no Imbuí!

– Vamos lá. Quem sabe você acerta.

Eles foram até o Imbuí. Cruzaram a Paralela em silêncio. O passageiro observava tudo atentamente, e Lobo o observava. Ao chegarem ao Imbuí veio a pergunta:

– É por aqui, doutor?

– Não. Com certeza, não.

Lobo deu meia-volta e seguiu adiante em busca da solução daquele enigma. Ficaram em silêncio o resto da madrugada. Do Imbuí foram até a Boca do Rio, Itapuã e retornaram pela orla. Piatã, Pituaçu, Jardim Armação, Costa Azul, Pituba, Amaralina, Rio Vermelho, Ondina, Barra, Vitória, Campo Grande, Praça da Sé, Nazaré, Barbalho, Saúde, Sete Portas, Rótula do Abacaxi, Cabula, Retiro, Dois Leões e, quando chegaram à Suburbana, viram o dia nascer na Enseada do Cabrito, com o sol despertando os miseráveis de Alagados para mais uma jornada de trabalho.

– E aí doutor? Nada ainda?

– Nada. Não consigo lembrar de nada além do meu trabalho e das pessoas lá do escritório.

– E agora? O que é que a gente faz?

– Que horas são?

– Vai dar sete, doutor. E a gasolina tá indo embora…

– Me leva de volta pro escritório.

– Como é?

– Já tá quase na hora de abrir a firma, e eu preciso passar um e–mail para um fornecedor.

– O senhor não vai voltar pra casa? Vai voltar para o trabalho sem tomar um banho nem trocar de roupa?

– Eu preciso.

Finalmente Lobo entendeu aquele homem. Deu meia-volta no primeiro retorno e, novamente em silêncio, voltaram até aquele prédio cheio de escritórios numa avenida cheia de prédios. O passageiro rompeu o silêncio apenas uma vez durante a viagem.

– Dá para o senhor acelerar um pouco? É que eu não quero atrasar para o trabalho.

Lobo assentiu com a cabeça e fez o que devia ser feito. Depois ele voltaria para a sua casa, tomaria um banho e, quando a noite caísse mais uma vez, sairia da sua toca para tomar o seu lugar na madrugada dessa cidade cada vez mais estranha.

1505643695 (1)
Foto: Vinícius Xavier.

Victor Mascarenhas é escritor e roteirista. Publicou os livros Cafeína (Contos – vencedor do Prêmio Fundação Casa de Jorge Amado, 2008), A insuportável família feliz (Contos, 2011), Xing Ling made in China (Romance, 2013) e Um certo mal-estar (Contos, 2015). Foi finalista do Prêmio Off-Flip 2011 e é autor do roteiro da graphic novel Billy Jackson (2013), com desenhos de Cau Gomez.  


Deixe um comentário