Milagres, de Marcus Vinícius Rodrigues | Coluna CONTO AFORA, edição especial

Em mais uma edição especial, a CONTO AFORA traz um escritor muito talentoso e de reconhecimento nacional. Marcus Vinícius Rodrigues apresenta Milagres, conto inédito, feito sob desafio lançado. Na estrada, diálogos concisos  – bem afeitos ao desnorteio dos personagens  – vão tecendo toda a lógica interna desta road short story. Parabéns, Marcus, pelo êxito do belo conto. E muito obrigado por mais uma vez estrelar nossa Coluna CONTO AFORA.

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      — Quer mais água?

      O homem o encarou com o olhar distante como se ainda estivesse sentado na beira da estrada, a cabeça baixa, o branco da camisa se destacando do asfalto. Raimundo desviou para a contramão da estrada e se forçou a não diminuir a velocidade para olhar — a curiosidade. Qualquer motivo para parar naquele ermo poderia ser uma armadilha. Manteve o caminhão em marcha enquanto o homem permanecia sentado, cada vez mais distante, até que o branco da camisa se fundiu com o horizonte amarelado daquele começo de manhã. Pretendia seguir em frente até chegar a Milagres. Alcançaria a BR-116 e esqueceria o que tinha deixado para trás. O homem e tudo mais apenas um borrão na paisagem. Seguiu ainda alguns quilômetros na estrada estadual e se arrependeu de demorar tanto para se decidir. O caminho de volta lhe pareceu mais longo, um longo tempo de alertas sobre o mal do mundo, sobre como não dá para saber as intenções de uma pessoa só pela cara. Ele tinha aprendido do jeito mais difícil. Quando voltou a avistar o homem, ele estava na mesma posição: sentado, as pernas estiradas para o acostamento, as costas curvadas para frente, os braços estendidos ao lado do corpo. Tinha uma calça social azul, sapatos sociais e a camisa branca de mangas compridas tinha manchas de sangue no ombro esquerdo. O sangue com certeza vinha de um ferimento na cabeça. Sujou a camisa em todo o lado esquerdo. A manga. As duas mãos também estavam sujas de sangue. Sangue estancado, velho.

      — O senhor não lembra mesmo de nada?

      O olhar era vazio ainda. Foi difícil colocá-lo na cabine do caminhão. Resistiu a ficar sentado. Saiu do caminhão e voltou para estrada. Caminhava na direção da BR. Raimundo o chamou. Ele olhou para trás como se procurasse alguma coisa e retomou o passo. Foi preciso manobrar o caminhão e segui-lo. A velocidade mínima acompanhando o passo. Por fim, ele aceitou entrar quando Raimundo lhe disse que ia para aquele mesmo lado.

      — A ira do Senhor cairá sobre os pecadores como uma língua de fogo.

      As frases não tinham sentido. Falou de uma briga. Não sabia dizer o que tinha acontecido. Falava sempre de um fogo vindo dos céus.

      — A noite vermelha. Os pecadores queimados na fogueira.

      Raimundo desistiu de perguntar mais. O homem começou a murmurar alguma coisa que parecia uma oração. Depois de um tempo, dormiu. Enquanto dirigia, pode observar a camisa fechada até o colarinho, as mangas esticadas até os punhos. Se não estivesse sujo de sangue e poeira, estaria vestido bem alinhado. Não tinha dito o próprio nome. Não tinha respondido nenhuma pergunta objetivamente. Cada vez que era chamado, vinha a história do fogo, dos pecadores. A ira do Senhor, ele disse. Estava louco, pensou Raimundo, e logo achou que estava ficando impressionado com aquela história porque começava a sentir cheiro de queimado. Não percebia nenhuma fuligem, só havia sangue, mas sentia o cheiro cada vez mais nítido. Uma impressão. Um cheiro não surge assim do nada. Os cheiros vêm sempre de algum lugar. Se há um perfume diferente num pescoço, é porque veio de algum lugar. Ninguém começa a cheirar a alguma coisa se não se encostou de algum modo naquela coisa. Em alguém. Decidiu para si que não era uma impressão. Sentia o cheiro e era cada vez mais forte à medida que prestava atenção. O perfume, o cheiro de queimado. Os avisos de uma tragédia. Tocou de leve o braço do homem, que acordou suavemente.

      — Esse fogo… teve algum incêndio?

     O homem baixou o olhar para o painel do carro. Ficou olhando um ímã com a imagem de um crucifixo. A mão ensaiou um gesto de tocar e recuou.

      — É para proteção. Essas estradas são perigosas.

      — O pecador deve ser arrepender antes de ser digno da bênção.

      — O senhor é religioso, né?

      — Somos todos.

      — Mais ou menos… e o incêndio?

      O homem não respondeu. Fixou o olhar na estrada, a linha reta à frente. Novamente não estava mais ali. Voltou a murmurar as rezas. Raimundo se concentrou em dirigir. Se esforçava para não se arrepender de ter parado para pegar o homem. Precisava praticar uma boa ação. Uma boa ação compensa as más. E o mal que nos fizeram? Quase pergunta em voz alta. Quis acelerar, ir mais rápido, mas o caminhão estava carregado. Não importava o quanto o motor forçasse, ele não ultrapassava o limite de velocidade. A gente escolhe o caminho, mas é a carga que se leva que diz a velocidade.

      — Como foi que chegou naquele meio de nada.

      — Andei.

      — E veio de onde? De Amargosa?

      — Amargosa? Eu conheço Amargosa. Cidade bonita.

      — Então o senhor é de lá?

      O homem balançou a cabeça negativamente.

      — O Senhor despeja sua cólera sagrada contra os iníquos.

      Desta vez foi Raimundo que se calou. Não conhecia a palavra, mas adivinhava que, se perguntasse, o homem falaria novamente dos pecadores. E foi o que aconteceu de qualquer forma. Ele falou dos pecados do mundo e de como era preciso purgar todas as faltas. Mesmo quando a gente tem razão? Raimundo quis perguntar, mas se calou. Aquele homem era evidentemente perturbado. Não convinha contrariar.

      —… instrumentos da ira sagrada…

      Raimundo lembrou da oração de São Francisco. Quase completa a fala do homem, mas não lhe pareceu que era disso que ele falava.

      —… o pecado deve ser varrido da face da terra… para glória do Senhor… na tua ira os perseguirás, e os destruirás de debaixo dos céus do Senhor.

      Ele foi ficando cada vez mais agitado. As frases cada vez mais desconexas.

      —… mataste, não perdoaste…

      Alcançaram a BR-116. Estavam perto de Milagres. Raimundo quis voltar a uma conversa natural, ou pelo menos começar alguma.

      — Se o senhor não é de Amargosa… bem… estava vindo na direção de Milagres. Veio fazer alguma coisa aqui?

      O homem olhou para Raimundo. Parecia que o via pela primeira vez. Os olhos vazios ganharam um brilho lá no fundo, como se alguém lá atrás, no fim do túnel comprido, acendesse um fósforo. Que não seja a ira do Senhor, pensou Raimundo. Não era. O homem acendia uma lembrança. Uma faísca que, aos poucos, começava a iluminar toda a memória.

      — Estamos indo para Milagres?

      Era a primeira frase coerente.

      — Sim. Está bem aí na frente. Olha os morros.

      Bem à frente, na paisagem plana e seca, surgiam os morros que circundavam a cidade. Rapidamente entraram em Milagres.

      — Tem algum lugar onde posso deixar o senhor?

      O homem tinha os olhos cheios de água. Sem falar nada, apontou para uma direção. Havia uma pequena coluna de fumaça no centro da cidade. Raimundo teve medo de perguntar, teve medo de pensar qualquer coisa sobre o que estava acontecendo.

      — Ali? Tem certeza?

      — Ali.

      O caminhão avançou pelas ruas estreitas, cheias de gente. Aos poucos a multidão os notou e começou a acompanhar. Abriam caminho, cercavam pelos dois lados, fechavam o caminho atrás. Seria impossível dar ré. As pessoas murmuravam entre si — Raimundo achou ter ouvido a palavra pastor —, espalhavam a mensagem como se fossem formigas se comunicando por ondas elétricas. Havia mesmo uma eletricidade se espalhando pelo lugar. Elas ditavam o caminho. Bastava seguir os clarões abertos. Ele seguiu até dobrar uma esquina e ver. Um prédio que devia ter sido um galpão e agora era uma ruína queimada. Freou hesitante.

      — Tem certeza? O que o senhor vai fazer aí?

      O homem estava de novo ausente. Toda a lucidez tinha desaparecido.

      —… pois somos consumidos pela Tua ira, e pelo Teu furor somos angustiados.

      Os gritos começaram dispersos, ainda sem convicção, indefinidos, distantes. Eram como pequenos soluços. A multidão acordava lentamente. Mais vozes surgiram, desconexas. Pouco a pouco foram se juntando no mesmo grito, foram ganhando ritmo, as sílabas bem articuladas, numa simultaneidade irracional.

      — Assassino, assassino…

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 Marcus Vinícius Rodrigues nasceu em Ilhéus-Ba e mora em Salvador-Ba. Tem oito livros publicados, entre os quais Café molotov (Contos, Ed. 7Letras, 2018); A eternidade da maçã (Contos, Ed. 7Letras, 2016), vencedor do Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia de 2016; Arquivos de um corpo em viagem (Poesia, Editora Mondrongo, 2015)  e Cada dia sobre a terra (Contos, Editora Caramurê, 2010).


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