Os últimos centavos, de Paulo Bono | Coluna CONTO AFORA, edição especial

Em mais uma edição especial, a Coluna CONTO AFORA traz um conto de Paulo Bono. Uma história breve e despojada, no entanto, cheia de ternura e que sugere, por seu despojamento e crueza, um aceno de beleza e liberdade; a mais genuína delas: a liberdade dos que não tem saída. Obrigado Paulo Bono por estar na CONTO AFORA, com sua arte crua e bela.

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Era minha última noite em Feira de Santana. Me sentia esgotado. Deixei a firma sem me despedir e caminhei pela avenida morta sem uma noção exata de futuro. Sem grandes objetivos, a não ser o de me livrar daquela cidade. Parei numa mercearia e comprei um bauru e uma garrafa de vinho. Depois segui até encontrar essa trabalhadora encostada numa árvore. Perguntei o preço da carne. Setenta, sem o toba. Tudo bem, eu disse. Então minha última amiga de Feira e eu caminhamos em silencio pela avenida. Logo estávamos abrindo a porta do meu quarto.

– Cara, você dorme numa esteira – disse.
– Mas o chuveiro é quente, baby.
– Aqui tem muito mosquito?
– Vamos combinar o seguinte. Eu fico no vinho e você chupa.

Cibelle era bonita e esforçada. Mas o show era amador. Aquela maldita pressa das putas baratas. Eu apenas bebia. Não sentia nada além de tédio. Virei mais um gole e a mandei ficar de quatro. Me aproximei.

– AAAAAAHHHHHHH, DELÍCIA!
– Calma, caralho! Nem meti ainda.
– Ah, tá.
– Agora receba!
– YAHHHHHHH!! UUUOOOHHHHHH!!, VAAAAIIIIII, DELÍCIA!
– Mais baixo, porra! Dona Zeni é evangélica.
– Quem?
– A senhoria. Ela mora embaixo e tem mau hálito.
– Minha mãe também é testemunha de jeová.
– Outra coisa. Não me chame de delícia.
– Você não gosta, paixão?
– Sei que não sou delícia. Sei que você não me acha delícia. Então não precisa fingir que sou delícia. Vamos jogar limpo. Vamos agir naturalmente.
– Está bem, amor.
– Nada de amor por aqui também.

Então comecei. Mas a coisa não funcionava. Era um vai e vem sem propósito, um deslocamento automático de carne sem vida. Me derretia em suor. Talvez já fosse o vinho fazendo efeito. Tentei me concentrar. Pensei em Nicoli Puzzi, Monique Lafond, Adele Fátima e na Juci do pastel. Não adiantava. Então abri os olhos e percebi que enquanto eu estocava feito um louco, Cibelle fazia anotações numa revista da Avon. Parei e enxuguei o rosto. Dei mais uma mamada no vinho e deitei ao seu lado.
– Algum problema, paixão? – disse.
– Mais tarde bato uma.
– Posso comer um pedaço do bauru?
– Qual o caso da revista?
– Eu também vendo. Comecei agora.
– Reparou que todos em Feira estão sempre negociando alguma coisa?
– Quer pedir? Chega dia 28.
– Se tiver alguma promoção de desodorante roll–on…

– 3 por 12.
– Se eu não estiver, pode deixar com Dona Zeni.

– Esse é o melhor bauru que existe. Quer um pedaço?

– Comprei pra você.

– Você é um cara legal.
– E você, uma delicia.

Depois que Cibelle foi embora fiquei na janela observando a pobreza da rua. Lixo, postes apagados, esgoto a céu aberto. Mas talvez fosse a viela mais limpa daquela cidade. De certa forma, pude viver Feira de Santana. Saltando de pensão em pensão, escapando com vida de um colega de quarto psicopata, perseguido por um ex-marido estúpido, brigando em mesas de dominó, perdendo o salário em mesas de poker. Eu tinha 20 e pouco anos e aprendi bastante. Sobre oportunismo, negociatas, traições, manobras, mesquinhez, artifícios e fachadas. Dizem que é um dos maiores polos de desmanches de carros roubados do país. Eu sentia pena dos desmanchadores de carros, como também das putas e ladrões de carteira. Estavam cercados. Aquela cidade amava o dinheiro acima de tudo. E eu fazia questão de não levar comigo nenhum centavo que me lembrasse suas avenidas, negócios e escambos. Pus a mão no bolso. Eu ainda tinha 30 reais. A passagem era 25. Então abri a porta e desci as escadas. Atravessei a rua, fui até o copo sujo da esquina e pedi o vinho mais barato. 4,25. Restavam 75 centavos. Então ao deixar o boteco, atirei as duas malditas moedas no esgoto. ­­De volta para os ratos.

foto (1)Paulo Bono nasceu e cresceu nas ruas da Lapinha, em Salvador. É flamenguista, publicitário, escritor e roteirista. Publicou Espalitando (Cousa, 2013, Contos e crônicas), participou da coletânea Casa de Orates  (Mondrongo, 2016, Contos) e escreveu O Garoto ( Saturno Filmes,  2014, 14 min.).


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