O escorpião amarelo, de Katia Borges

Um conto de poeta. É assim que encerramos a 4ª temporada da coluna CONTO AFORA, depois de dez semanas seguidas, pelas quais passaram contistas do Brasil e da América Latina. Cremos que nenhum outro texto encerraria melhor esta sequência da CONTO AFORA, que, diga-se, não ocorreria sem o auxílio curatorial devotado e atencioso do escritor e Mestre em Literatura Ricardo Thadeu. Fiquemos, portanto, com O escorpião amarelo, texto da escritora Katia Borges, um conto denso, em que a palavra se reinventa, inaugura sentidos e rompe com noções basilares de tempo e espaço.

Depois da leitura, clique AQUI e ouça o tema musical de O escorpião amarelo.

Conto Afora4ªTemporada

E, então, eu seguro o pequeno animal peçonhento entre os dedos como se ele fosse um tesouro. Um único escorpião amarelo pode gerar até 40 outros. E sem necessidade de macho. Duas crias em um ano, 20 filhotes em cada cria. Uma espécie formada apenas por fêmeas, na qual os óvulos se desenvolvem sem fecundação. De repente, eu deixo o bicho cair no chão e outros escorpiões saem rapidamente dos esconderijos. Estão famintos, devoram-se uns aos outros. Acendo um cigarro e fico observando. Tanto veneno, meu Deus!

Sobrevivi aos 15 anos. E, assim como os escorpiões amarelos, criei hábitos noturnos e crepusculares. Uma dose de álcool, algum fumo. Coisas normais para quem traz um ferrão cravado no peito. Casei, acasalei, emudeci, gritei durante os partos. Sou uma mulher absolutamente comum. Do tipo que prepara lanches deliciosos para os filhos, joga buraco com os amigos e faz amor duas vezes por semana com o marido. Olhem meus braços. Não há sinal de ferroadas. A cada manhã, escapo inteira do mesmo sonho.

Mas não contei o sonho inteiro. Há nele “uma ternura venenosa de tão funda”. E o medo. O medo que sinto de mim mesma. A visão que tenho de meus filhos mortos. A sensação em que me afundo ao olhar o céu. E o desabar de uma chuva que parece varrer o mundo. E que não cessa até que ela surja. Turva. Primeiro, vem bem menina e me puxa pela mão para ver o mar. Depois, quase adulta, tenta me afogar para que eu não diga nada sobre o que sinto. E, no entanto, sempre fomos cúmplices numa forma indescritível de sentimento.

E até nessa falta de dor, espécie de anestesia que dura desde o casamento. Olho a minha casa, cheirando a pinho, e acho tudo muito bom. Como se a família fosse um esconderijo. Ninguém pode me ferir aqui no Caminho das Árvores. E, nas copas, avisto as damas que se assumem. Passam por mim no mercado, de mãos dadas, cheirando as frutas, mastigando as uvas, sujas, o sumo escorrendo da boca. Imagino que coisas fazem juntas e viro o rosto. Reviro os olhos. Sozinha na cama. O marido em viagem de negócios. Os filhos dormindo. E sonho de novo e de novo com os escorpiões amarelos.

Mas nem sempre foi assim. Confesso. Eu também já fui suja de desejos. Quando ela vinha e apertava a minha pele entre seus dedos. Como se colocasse a mão entre as fendas de uma árvore. Eu a podia sentir em minha dor como carícia. E mordia os lábios, rindo por dentro, louca por arranhões, tapas e empurrões. Qualquer contato, por mais absurdo, entre meu corpo e o dela. Misto de camareira e inocente útil, eu cuidava de pentear-lhe os cabelos, outro pretexto, e de vigiar seus pretendentes de perto, levando e trazendo bilhetes. É este? Não. É este? Não. É este? E foi assim que conheci o homem que me faria pensar em casamento. Não por amor, infelizmente. Mas em agonia de morte, veneno inoculado no peito.

Casei com ele só porque ela o queria. E ele a mim. Desde sempre. E ainda ardo na nossa última noite. Falei, enfim, sobre sonhos e pesadelos e escorpiões. O vestido de noiva sobre a cama, os convidados no andar de baixo, num misto de alegria e confusão. E tudo que lembro é a sensação da água, que subia, encharcando meus tornozelos e, logo, entrando pela boca e enchendo os pulmões. Até que já não podia dizer nada. E o sentimento em torno de mim era um oceano inacreditavelmente solitário e sombrio. Todo o resto foi puro exercício de existir. Vestir a roupa branca, percorrer a nave central da igreja, dizer sim. E, dentro dos anos, procriar, criar herdeiros da vergonha para deixar entregues ao mundo, ao grande mundo.

Os escorpiões sobreviveram a muitos cataclismos, mas não venceram. Veja como ainda se escondem e usam o veneno. Pobres criaturas seculares. Tão venenosas quanto indefesas… Outro domingo. E deixo que tudo desapareça, engolido pela segunda-feira. Há um revólver guardado na gaveta direita da cômoda. E a carta que ela mandou antes de atirar. Sei que estou acordada, que estive acordada todo o tempo, e agora sinto o animal peçonhento subindo pelas pernas. Nenhum medo. Quase gozo. Ao sentir o seu ferrão penetrar a minha pele e destruir-me os nervos.

13680516_10206604645054502_2821401913561478478_nKatia Borges é jornalista e escritora. Publicou De volta à caixa de abelhas (Selo Letras, 2002, poesia), Uma balada para Janis (P55, 2009, poesia), Ticket Zen (Escrituras, 2010, poesia), Escorpião amarelo (P55, 2012, contos) e São Selvagem (P55, 2014, poesia). Tem poemas nas coletâneas Roteiro da Poesia Brasileira, anos 2000 (Global, 2009), Traversée d’Océans – Voix poétiques de Bretagne et de Bahia (Éditions Lanore, 2012) e na Mini-Anthology of Brazilian Poetry (Placitas: Malpais Rewiew, 2013).


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